Reconhecendo que o ato de tratar é indissociável dos conceitos “cuidar” e “conhecer”, Dulce Catanho sempre se entregou à pessoa com ostomia, numa relação de igualdade. Perguntadora nata e dona de um forte sentido de missão, tem procurado, ao longo destes quase 30 anos de experiência na Ostomia, oferecer a melhor solução a cada doente.
Dulce Catanho acredita que foi a sua permanente dedicação ao irmão, que sofre de paralisia cerebral, que a levou a valorizar tanto o ato de cuidar do outro. O acompanhamento do irmão nas consultas e a necessidade de adquirir estratégias de resolução para os problemas que ia identificando levaram-na a estar bem atenta ao que se fazia no meio hospitalar, de forma a replicar em contexto domiciliário. Esta proximidade aos cuidados hospitalares, aliada aos laços de sangue da sua avó materna, então parteira, acabaram por direcionar o caminho de Dulce Catanho para a Enfermagem.
As necessidades económicas da família levaram-na a “arregaçar as mangas” para financiar os seus estudos. Foi neste contexto, enquanto assistente de Enfermagem – função hoje denominada de assistente operacional – numa entidade privada, enquanto estudava na Escola Superior de Enfermagem de Calouste Gulbenkian de Lisboa, que lidou, pela primeira vez, com uma doente ostomizada. Ainda hoje, não se esquece de ter testemunhado, por várias vezes nessa noite, o desencaixe do saco e de, perante a sua surpresa relativamente à falta de alternativas, lhe terem dito que o material era escasso e dispendioso. Desde aí, não mais largou o tema: “Para mim, as situações não podem ficar por resolver, e fiquei ávida que a minha formação académica me trouxesse alguma luz de esperança.”
Concluída a sua formação, em 1993, começou a trabalhar na Medicina 1 do Hospital de Santo António dos Capuchos, um serviço que tinha uma vertente oncológica bastante marcada, acabando por travar conhecimento com muitos doentes ostomizados. Aí encontrou o mesmo cenário que havia experienciado anteriormente, na instituição privada: “Os dispositivos eram escassos, eu continuava a recorrer ao humor para minimizar o constrangimento de algumas situações e os métodos aprendidos no curso em nada se diferenciavam dos já praticados.”
Procurando ajuda nos colegas mais experientes, percebeu que a atitude era de afastamento face a este tipo de doentes. “Muitos não sabiam qual a utilidade de determinados materiais ou a forma como se colocavam”, refere, garantindo que essa perceção foi a “pedra de toque” para seguir o conselho da sua então enfermeira-chefe de procurar ferramentas para investir na área. Dulce Catanho admite que foi o contacto com delegados de informação médica que “abriu portas ao caminho traçado até hoje”, por lhe terem “dado a conhecer outros dispositivos, ensinado o seu funcionamento, mostrado o que existia mais além e facilitado o contacto com colegas mais experientes, com quem podia aprender”.
“Saber fazer, saber ser e saber estar do outro lado”
A sua incessante busca pela validação levou-a, desde logo, a criar o hábito de experimentar os materiais em si própria, o que entende “conferir uma amplitude diferente àquilo que é a nossa anatomia e realçar a importância da marcação anatómica correta de um estoma”. Além de ter, desde então, uma maior sensibilidade para a facilidade no manuseio e para o conforto, a enfermeira realça que, com a ajuda de cada doente, procura adequar o dispositivo a cada um e a cada momento da sua vida. “Não podemos tratar de ostomias sem cuidarmos de pessoas, logo, temos de conhecê-las, e as consultas possibilitam este acompanhamento contínuo”, destaca. E, apesar de muito investir na autonomia do doente, salvaguarda que “esta capacidade não tem de ser total, e é aí que entra o trabalho de equipa”.
Dulce Catanho entende que, “na Estomaterapia, está-se em constante ensino-aprendizagem” e acredita mesmo que, nesta área, cresceu enquanto pessoa e como profissional. Sem nunca perder a esperança, mesmo perante uma inversão, procura sempre “a melhor solução, numa fusão com o doente e com o cuidador”. E admite que, “muitas vezes, aquilo que a evidência, ou até mesmo a experiência, nos diz não corresponde à melhor ação a tomar com determinado doente, sendo preciso, quase no imediato, estabelecer uma relação de cumplicidade com ele, ter a capacidade de o escutar e procurar sempre a excelência para cada um”.
Apesar de reconhecer que o papel dos enfermeiros com competência nesta área é essencial neste processo de reabilitação, “não basta saber fazer, mas igualmente saber ser e saber estar também do outro lado”. O seu objetivo tem passado sempre por “elevar o doente, de forma que, através das ferramentas dadas, ele consiga sentir-se o mais possível um ser comum e viver socialmente sem qualquer inibição”.
“Ter a liberdade de procurar novas soluções”
Ao longo do percurso até agora trilhado, a enfermeira tem vindo a criar e conquistar ferramentas que colmatem as necessidades nesta área. Em 2009, quando já havia acompanhado a então enfermeira-chefe na transição para o Serviço de Cirurgia Geral, ela que sempre a instigou a procurar novas soluções, começou por elaborar um guia de procedimentos no pós-operatório de forma a estruturar as diferentes etapas que o doente deve realizar e, posteriormente, alertou para a necessidade de lhe ser atribuído um tempo útil adstrito a esta atividade. A aquisição de uma maior quantidade e variedade de material continua a ser uma constante.
Quando o Serviço de Cirurgia do antigo Hospital do Desterro foi deslocado para os Capuchos, foi impulsionada a criação de uma Unidade de Patologia Colorretal, Dulce Catanho foi considerada a profissional certa para alavancar uma Consulta de Ostomizados, que veio a nascer a 5 de julho de 2011.
Em 2016, aquele Serviço acabou por ser deslocalizado para o Hospital Curry Cabral e originar o Centro de Referência de Cancro do Reto do CHLC, do qual a enfermeira muito se orgulha. Neste novo hospital, acompanhada por uma outra enfermeira-chefe, continua a ter a liberdade de propor melhorias. “Quando percebemos que conseguimos criar valor e que alguém reconhece o nosso mérito, o desafio de procurar novas soluções é ainda maior”, distingue.
O símbolo que a enfermeira escolheu para identificar a Consulta de Ostomias é, em tudo, revelador da forma como encara esta missão: “Eu queria uma flor que associasse o miolo ao estoma e as pétalas ao indivíduo – um girassol − e que fosse suportada por umas mãos, enquanto representação do acompanhamento que lhe vamos prestar, portanto, do colo de que ele precisa.” Dulce Catanho não se esquece do momento em que uma doente lhe entregou a pintura de um girassol, com o pormenor de ter as mãos no centro do estoma, enquanto representação da autonomia que tinha ganho. “São estes gestos e palavras dos doentes o verdadeiro retorno da minha entrega, onde acabamos por nos espelhar”, diz.
A enfermeira lembra-se bem da redação que escreveu na escola primária, em que dizia querer seguir esta profissão ou a de professora: “Mal sabia que, ao ser enfermeira, ia ensinar e aprender todos os dias.” Mais: Ser atriz era também um sonho paralelo que tinha, e que hoje reconhece estar a viver, “ao contracenar com cada doente e cada cuidador para que, no final, a peça corra pelo melhor”.
A sua dedicação incondicional aos doentes e à sua própria família acabou por condicionar parte da sua vida pessoal, no entanto, assegura que só sabe ser feliz com as pessoas. “Posso não ter uma vida muito feliz, mas sou, seguramente, uma pessoa feliz”, declara. E, hoje, quando olha para o atleta paralímpico em que o seu irmão se tornou, não tem dúvidas de que tudo valeu a pena.
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